Emília Duarte: “A atribuição de género às áreas científicas continua evidente”

11 fevereiro 2024

Entrevista a Emília Duarte, professora catedrática do IADE e coordenadora da UNIDCOM/IADE, no âmbito do Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência.

1. Como vê a evolução da participação das mulheres na ciência ao longo dos anos na sua área de investigação? Quais foram os principais obstáculos enfrentados e quais os avanços alcançados?

A trajetória recente da participação feminina na ciência em geral e no design em particular,revela conquistas notáveis, embora de maneira gradual. Em Portugal, notamos recentemente avanços significativos, com a nomeação de duas catedráticas em design e mulheres a assumir posições de liderança em centros de investigação nesta área. Contudo, o percurso tem sido marcado por desafios persistentes, como a discriminação de género e estereótipos profundamente enraizados na cultura, que permeiam sistemas de crenças abrangentes sobre papéis familiares, ocupações e autopercepções, delineando um quadro binário de masculino versus feminino.

A atribuição de género às áreas científicas continua evidente, com a matemática frequentemente associada à masculinidade, impactando tanto estudantes do sexo masculino quanto feminino. Disciplinas como a Física são percebidas como mais masculinas, enquanto a Química e as áreas das Ciências Sociais, Artes e Humanidades são consideradas menos masculinizadas.

A persistência desta segregação de género na orientação vocacional dos jovens é um fenómeno que atravessa décadas nos países da OCDE, refletindo-se na sub-representação de homens em áreas como educação e saúde, e na sub-representação contínua de mulheres em campos STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics). Projeções recentes indicam que essa segregação persistirá nas próximas gerações.

Dada a natureza interdisciplinar do Design, enquadrando-se no âmbito STEAM(acrescendo Arts), a percepção damasculinidade nas disciplinas científicas impactará naturalmente a presença feminina neste campo. Uma representação menos masculinizada destas disciplinas estará associada a uma maior probabilidade de aspirações a carreiras STEAM, especialmente entre as mulheres jovens. Torna-se, por isso, urgente abordar e modificar a imagem das ciências desde as etapas iniciais da educação, com especial atenção ao ensino secundário, para influenciar as escolhas profissionais futuras.

Essas percepções têm implicações nas especializações em design, moldando não só as abordagens metodológicas, como as problemáticas escolhidas. Atualmente, as mulheres demonstram maior interesse em áreas como design para a sustentabilidade, inovação social e artes, enquanto homens tendem a preferir design de produto e design de produto digital, por exemplo.

Apesar dos obstáculos, as mulheres vão superando os desafios econquistando reconhecimento, ao mesmo tempo que contribuem significativamente em diversas disciplinas. Mas, embora haja avanços notáveis, é crucial persistir na desconstrução de estereótipos e na criação de ambientes mais inclusivos para as futuras gerações. As ameaças globais que a humanidade enfrenta, como as alterações climáticas, colocam as mulheres entre os grupos de risco, pelo que se torna urgente enfrentar esta questão.

2. Enumere algumas das contribuições únicas que as mulheres trouxeram para o campo da ciência. E de que forma é que essas perspetivas impactam o processo de pesquisa e os resultados?

As mulheres têm enriquecido a ciência com contribuições notáveis, desde avanços médicos até desenvolvimentos tecnológicos. Nomeá-las seria uma tarefa inglória. Prefiro focar-me no facto de a sua perspectiva única trazer abordagens inovadoras, reflexões e questionamentos diferenciados e um foco em áreas muitas vezes negligenciadas. Essa diversidade de perspectivas e de coragem em assumi-las, resulta em investigações mais abrangentes e resultados mais impactantes, destacando a necessidade contínua de promover a igualdade de género no campo científico. Estarem presentes, ativa e conscientemente empenhadas numa reflexão critica do status quo, libertas de visões redutoras do mundo, especialmente focadas na construção de um futuro de florescimento da humanidade, será, sem dúvida, o seu maior contributo para a ciência.

3. A representação das mulheres em cargos de liderança na ciência ainda é significativamente inferior em comparação com os homens. Quais são os principais desafios que as mulheres enfrentam para alcançar posições de liderança e como podemos superar essas barreiras?

As mulheres deparam-se com desafios notáveis ao nível da liderança na ciência, como o persistente viés de género e a carência de orientação necessária para ascenderem a cargos de topo. A superação dessas barreiras exige a implementação de políticas inclusivas, programas de mentoria específicos e um empenho ativo na promoção da igualdade de oportunidades. A sensibilização sobre a importância da diversidade nos altos escalões é essencial para efetuar mudanças duradouras.

As instituições académicas têm a responsabilidade crucial de fomentar ambientes inclusivos, aplicar políticas antidiscriminatórias e garantir igualdade de oportunidades. Apesar dos avanços, subsiste uma disparidade salarial flagrante, especialmente nas áreas STEM, onde as mulheres ganham, em média, apenas 79% dos salários dos homens. Essa disparidade salarial ao longo da carreira perpetua-se, resultando em acumulação desigual de riqueza. A maternidade acarreta uma "penalidade" salarial, com as mães a perder cerca de 5% dos seus salários por filho, enquanto os pais, paradoxalmente, recebem um "bônus" salarial de aproximadamente 4% a mais do que colegas masculinos sem filhos. Estereótipos de género e perceções sobre comprometimento e aptidões, desempenham papéis críticos nessas discrepâncias.

As desigualdades de género estendem-se às taxas de sucesso na obtenção de financiamento, prémios e progressão na carreira. Acções deliberadas para aumentar a equidade nos júris e revisão dos critérios de avaliação são cruciais. Por exemplo, a menor participação feminina em concursos de financiamento para a investigação contribui para concessões de menor valor para mulheres em comparação com homens, o que tem implicações na sua progressão na carreira.

Também não se pode ignorar o viés dos revisores, que muitas vezes favorece propostas de homens, revelando que as discrepâncias nas taxas de sucesso de concessões não refletem a qualidade real da proposta, mas sim as crenças enviesadas dos revisores sobre investigadores do sexo feminino.

Embora algumas áreas estejam a caminhar para a paridade de género nas taxas de sucesso da publicação de autoras e autores, persistem nuances, especialmente em campos como ciência da computação, física e matemática. Além disso, as mulheres são frequentemente sub-representadas nas posições mais prestigiadas de última autoria, evidenciando desigualdades mesmo em áreas onde sua representação é significativa. Essas desigualdades são ampliadas ao longo do tempo, com o aumento desigual nas taxas de publicação entre homens e mulheres, exacerbando as disparidades de autoria.

Os prémios de investigação em STEM continuam a favorecer homens, evidenciando-se nas baixas percentagens de mulheres premiadas em prestigiados prémios científicos, como o Nobel. Num cenário paradoxal, as mulheres são sobre-representadas em prémios de ensino e serviço, mas sub-representadas em prémios de investigação. Esta disparidade está enraizada em expectativas de género e estereótipos sobre as competências das mulheres em diferentes áreas. Superar esses desafios exige uma mudança profunda nas perceções e uma abordagem proactiva para garantir igualdade de oportunidades em todos os níveis da carreira científica.

4. O Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência destaca a importância da igualdade de género na ciência. Na sua opinião, qual é o papel das instituições académicas e da sociedade em geral na promoção dessa igualdade?

Curiosamente, alguns estudos evidenciam a persistência de estereótipos masculinos associados aos cientistas, manifestando-se desde a infância até ao ensino médio. Por exemplo, estudos com desenhos infantis demonstram a tendência em retratar cientistas como homens de óculos e blazers, perpetuando esse estigma de género mesmo com os avanços na representação feminina na ciência. Ou seja, o estereótipo emerge já no jardim de infância, perdurando ao longo dos diferentes níveis educacionais. A associação da ciência à imagem masculina e a atribuição de traços masculinos às disciplinas científicas alimentam essas percepções de género.

A sociedade, no seu todo, desempenha um papel crucial ao desafiar esses estereótipos, promovendo uma educação igualitária e apoiando iniciativas que estimulem a participação equitativa das mulheres na ciência. Essa transformação requer esforços coletivos para criar uma cultura que valorize a diversidade. A mudança, embora por vezes gradual e imperceptível, é possível. Narrativas positivas e significativas podem ser catalisadores poderosos para essa mudança, pois não é a sociedade, mas sim nós, enquanto agentes criadores do futuro, que moldamos as perceções. Somos a razão pela qual as coisas são como são e, ao criar o futuro de forma diferente, podemos quebrar o ciclo. Essa é a principal missão do design.

Para alcançar tal feito, é imperativo desafiar mitos, mudar atitudes e crenças arraigadas que fundamentam a nossa visão de mundo. Essa visão estabelece os princípios e valores que norteiam nossas ações, tornando-se difícil questioná-la, dada a sua influência intrínseca. Reconhecer esses viéses e amarras é o primeiro passo para a mudança, sendo este um dos principais objetivos de celebrações como o Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência.

5. Quais são as estratégias mais eficazes para incentivar e apoiar as jovens mulheres a seguir carreiras na ciência e investigação?

Entender as estratégias mais eficazes implica, inicialmente, compreender as barreiras existentes. Compreender, por exemplo, que as disparidades surgem desde as idades mais tenras, e que afectam a intenção das jovens seguirem carreiras científicas. Assumir que essa desigualdade persiste no ensino médio e na faculdade, tomando medidas para destacar áreas como ciência da computação e engenharia, onde a representação feminina é notavelmente menor. Fatores como a falta de modelos e professores femininos nessas disciplinas podem afastar as meninas, pelo que a sua visibilidade é urgente.

As estratégias eficazes incluem também programas de mentoria, de desenvolvimento profissional e a desconstrução de estereótipos de género ao longo da vida. Estabelecer redes de apoio e garantir a visibilidade das realizações das mulheres na ciência são fundamentais para inspirar futuras gerações. As Intervenções devem também abranger mudanças nas atitudes individuais, combater preconceitos explícitos e implícitos, a implementação de políticas organizacionais e educacionais, além de mudanças nas políticas governamentais. Essas intervenções visam criar ambientes mais equitativos e inclusivos, eliminando barreiras desde o início da educação até as posições avançadas na carreira académica.

6. De que forma podemos garantir que os ambientes académicos são inclusivos e acolhedores para cientistas de todos os gêneros?

Assegurar ambientes académicos inclusivos requer políticas que combatam assédio e discriminação, promovam diversidade nos processos de recrutamento e implementem programas de conscientização sobre o viés de género. É fundamental estabelecer uma cultura que valorize contribuições diversas, independentemente do género, para criar ambientes académicos verdadeiramente inclusivos. Princípios como igualdade de oportunidades e respeito à diversidade devem orientar a construção desses ambientes.

Combater o viés de género na contratação e remuneração também é crucial, pois estudos revelam que mulheres em profissões STEM têm menor probabilidade de serem contratadas e recebem salários mais baixos do que homens igualmente qualificados. Mesmo com currículos idênticos, as candidatas do sexo feminino são percebidas como menos contratáveis, recebem ofertas de salários mais baixos e são consideradas menos merecedoras de mentoria, em comparação com candidatos do sexo masculino. Essa discrepância também se manifesta ao nível das publicações científicas, atribuição de bolsas, prémios e avaliação do desempenho.

Relatos de uma cultura hostil na academia, com uma parcela significativa de académicas do sexo feminino a reportar casos de assédio moral e sexual, bem como a discriminação de género, destacam a urgência de promover mudanças. A escassez de oportunidades de mentoria para cientistas do sexo feminino contribui para um ambiente hostil, exigindo ações imediatas para garantir uma cultura de apoio e desenvolvimento.

É essencial reconhecer a necessidade de investigação contínua e alargada para esclarecer esta problemática e validar intervenções bem-sucedidas. Intervenções baseadas em evidências, que confrontam os participantes com demonstrações objetivas de viés de género, mostraram impacto, apesar de gerar alguma defensividade.

O viés de género em ambientes STEM também é influenciado por fatores estruturais, como arranjos de trabalho flexíveis, representações físicas que reforçam estereótipos e características culturais hostis. Por exemplo, a implementação de políticas de trabalho flexível pode beneficiar o tratamento e avanço das mulheres em STEM, especialmente as mães.

Mudanças imediatas, como a remoção de estereótipos masculinos em salas de aula, demonstraram melhorias na sensação de pertencimento de homens e mulheres em STEM. Iniciativas que enfatizam valores de grupo, como mentorias e redes de apoio, aumentam o interesse de mulheres em carreiras STEM. Estas são algumas das práticas já validadas internacionalmente, mas que tardam a ser generalizadas.

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